Gisele
O conto que segue-se foi escrito a quatro mãos. É que tenho uma amiga muito especial, a Vanessa Lee, que nunca tive privilégio de conhecer pessoalmente, mas que trouxe muita coisa boa pra minha vida, mesmo estando à quilômetros de distância. Ela é uma contista! Sim, amadora - por enquanto - mas é contista sim! Adora personagens femininas. Contagiada pelos seus escritos, fiz a proposta. Ambas começaríamos contos para a outra concluir. Assim nasceu a Gisele, que vocês irão conhecer agora. A primeira parte foi escrita por ela, e eu conclui. Boa leitura!
O shopping já estava movimentado, apesar de só ter aberto há menos de uma hora. Pessoas iam e vinham, algumas com pressa, outras lentamente observando vitrines e pessoas. Entre as pessoas havia adolescentes fardados, homens engravatados, garotas de short, camiseta e chinelo com as alças do biquíni aparecendo em volta do pescoço. Nas mesas da área de alimentação, havia pessoas lanchando, quartetos jogando baralho, grupinhos de garotas fofocando sobre o novo garoto que havia se matriculado no colégio no meio do ano... Mas nada disso importava a Gisele. Havia escolhido uma mesa no inicio da área de alimentação, pra que fosse logo vista, mas se sentou de costas pra que fosse vista antes de vê-lo. Gisele olhou mais uma vez o relógio. 9:34. Quatro minutos atrasado. Mas o que são quatro minutos perto de toda uma vida? Consertou o corpo na cadeira, tentando parar de balançar as pernas. Felizmente havia tido a boa idéia de trazer um livro pra ao menos fingir que não estava ansiosa. E suas mãos que não paravam de suar? E se ele não viesse? Só pensar nisso, seu coração gelou. Não, não é possível! Ele irá vim! Ele tem que vim! Sentiu-se como se novamente tivesse quatro anos e estivesse na porta da escola esperando a sua chegada. Quando aquele Fiat 147 azul chegava, que alegria se apoderava de seu coração! Mais um dia não havia sido abandonada! Porém, um dia o dono daquele Fiat 147 deixou de ir ao seu encontro. Outra olhada no relógio. 9:42. Não é possível! Não é possível! Gisele mal podia crer. Sentia em sua testa uma placa de idiota. Seus olhos ficaram rasos de lágrimas. Era um misto de tristeza, raiva e vergonha que sentia. Porém lutou pra que essas lágrimas não se derrapassem pelo seu rosto. Respirou fundo. Olhou a sua roupa. Havia acordado bem mais cedo que o habitual depois de uma noite na qual ficou revirando pela cama. Levou mais que meia hora escolhendo uma roupa que pudesse deixá-la com ar de bem sucedida - casual. Queria aparentar que sua vida era muito boa, mesmo sem ele. E que não havia se arrumado especialmente pra aquela ocasião. Aquele telefonema há dois dias, depois de quatro anos a havia surpreendido. Nada poderia prepará-la pra isso, pra ouvir de novo aquela voz pedindo pra se encontrar com ela. A última vez que ele havia procurado por ela, foi no dia dos pais, depois de sete meses sem contato. Ela estava tão magoada com o sumiço dele quando avisaram que era ele no telefone querendo falar com ela, que falou alto, pra que ele ouvisse do outro lado da linha: “Ele lembrou que tem filha justo no dia dos pais? Pois hoje sou eu quem não quer falar com ele!” Olhou no relógio. 10:05. Já estava se preparando pra se levantar e ir embora quando sentiu uma mão pousar em seu ombro direito. Naquele mesmo instante sentiu um frio na barriga, nas mãos, no corpo todo. Um calafrio percorreu seu ser. Aliás, o frio que sentiu nas mãos era culpa daquele maldito suor. Ela sofria de hiper-hidrose de fundo emocional desde a infância, mas o problema agravou-se depois que o pai foi embora. Ao sentir novamente aquele cheiro, aquelas mãos sempre geladas, não teve dúvidas: era ele. Mas estava paralisada e não conseguia olhar para trás.
O tempo havia parado – parecia.
“Gi”, foi o que ela ouviu. Mas ainda estava paralisada, num topor, não conseguia mover-se. Aquela voz! Ah, quantas saudades! O sabor dos doces da infância inundaram sua boa e Gisele chegou à salivar. Saudades dos passeios ao entardecer, à beira-mar... o pai costumava presenteá-la com um saboroso sorvete de banana caramelada nessas ocasiões. Ambos levavam bronca ao chegar em casa: ela por estar com a roupa toda suja, ele por haver dado sorvete pra menina à noite, aquilo era uma absurdo.
Gisele abriu os olhos e finalmente tomou coragem de voltar-se para trás. Mas não disse nada. Não ainda. Os sentimentos permaneciam confusos. Não sabia se deveria abraça-lo e chorar, como nos reencontros dos programas de domingo à tarde, ou se devia dizer-lhe tudo o que sofreu por causa de sua ausência. Então decidiu: olhando nos seus olhos falou “senta aqui, pai”.
- Filha, eu...
- Deixa, pai... não fala nada... eu quero falar – disse Gisele com voz altiva, porém serena.
- Filha, eu estava ali, te observando... desculpe-me, não conseguia levantar... só me aproximei quando percebi que você estava indo embo...
- Pára, não fica tentando se justificar – interrompeu Gisele uma vez mais. Dessa vez foi ríspida, ao ponto de surpreendê-lo. Ela passou a observá-lo. Percebeu que ele havia envelhecido quatorze anos em quatro. Parecia mal, a barba por fazer e muito magro. Naquele instante, sentiu uma profunda compaixão, inexplicável. – Pai, passei os últimos anos de minha vida imaginando o que eu havia feito de errado - disse Gisele, já entre lágrimas -, sofri muito. Não entendia o porquê. Foi uma fase difícil. Mamãe sentia ódio de você. Sente ainda. Não parece ser por ter sido abandonada, é o que penso. Sabe pai, entendo que ela seja sua ex-mulher... mas eu não posso ser tratada como sua ex-filha...
Gisele chorava e chorava... Mauro abraçou-a. Também chorou. Ela então foi se sentindo mais calma, como no dia que ele a ensinava a andar de bicicleta – sem rodinhas – e ela caiu. Aquele abraço à protegia, resguardava-a de todo o mal.
- Filha, preciso te dizer. Bem, gostaria que você conhecesse alguém.
Nesse momento um garotinho de cerca de cinco anos aproxima-se. Na verdade ele estava sentadinho na mesa ao lado o tempo todo, observando a cena, mas não aproximou-se. Gisele franziu a testa. Estranhamente aquele menino a fazia lembrar de si mesma quando tinha aquela idade. Pensamentos absurdos tomaram conta dela. Pela idade e semelhança com ela mesma esse menino só podia ser seu irmão – meio irmão, melhor dizendo. Ciúmes vicerais e infantis a dominavam, mas antes que ela reagisse, seu pai que desde muito tempo adivinhava seus pensamentos, atalhou:
- Sim, ele é seu irmão. Gisele, vou te contar o que aconteceu: conheci Floraci, Flora como era chamada no seu, digamos, "trabalho", há cerca de dez anos. Na época eu e sua mão não estávamos nada bem. Brigávamos todos os dias. Muitas vezes saia com você, ia passear na praia pra deixar o tempo passar e espairecer. Mas quando chegávamos em casa sua mãe ralhava por motivos absurdos. Até por eu ter te dado sorvete, imagina – falou isso com um sorriso triste. – Eu não pretendia que as coisas acontecessem assim. Nada foi planejado. Quando eu percebi, já havia me envolvido com a Flora. A princípio o relacionamento era... bem era profissional, entende? Mas depois acabamos nos envolvendo e já não tomávamos os cuidados necessários.
Gisele sentia-se mal com aquela conversa, queria que tudo acabasse logo. Na verdade sentia nojo do que ouvia. Mas escutava, ainda que impaciente.
- Bem, num desses descuidos Flora acabou engravidando. Como eu poderia contar isso pra sua mãe? Resolvi ficar calado, pra ver como as coisas andariam. Dei dinheiro para que Flora “fizesse o que fosse necessário para resolver nosso problema”. Foi isso que falei pra ela naquele momento. Ela, porém, surpreendentemente, não fez o que eu esperava. Pelo contrário, procurou um médico e começou a fazer o pré-natal. Num dos exames ela descobriu... bem ela descobriu que, além de grávida era soropositiva. Fiz o exame e descobri que eu também era – falou ele apertando forte as mãos da filha e prendendo a respiração.
- Gisele, vou te pedir uma coisa. Por favor, não diga não. Nessa pasta tem alguns documentos e informações importantes. Eu tenho pouco tempo de vida, preciso de alguém em quem confio e que me ame pra fazer algo. Cuide pra mim do Mauro. Na pasta tem todas as informações médicas dele, exames, hospitais onde ele é acompanhado. Não o abandone. Não faça com ele o que fiz com você. E não esqueça que amo a vocês dois.
Dizendo isso, deu beijo em ambos. E deu as costas. Foi embora, perdendo-se na multidão do shopping naquele dia dos pais inesquecível.